Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Fenix de Outono

Fenix de Outono

Alma velha, enrugada, curvada

Nunca me banharei duas vezes no mesmo rio, tal como não se banhou Heraclito. Nem tu. Nem ninguém. Mas as águas passadas teimam em permanecer. Ora como gotículas de suor que deslizam pelos pêlos dos meus braços. Ora como parte do sangue que corre em mim. Esse sangue que vai morrendo e desliza cada vez mais devagar. Formando pequenas lagoas à beira das quais me deito. Olho o céu azul do Alentejo, sinto a erva verde-amarelada acariciar-me a face. A lagoa. Essa, é de vermelho sangue. É para lá que correm as lágrimas que engulo em tantas horas, para que ninguém as veja.

As crianças saltitam agora à minha frente. Felizes as que não sabem.

O cão corre atrás da bola. Alegre o que não sabe.

O ignorante olha a televisão e grita com o jogador. Inocente o que não sabe.

Quando descobrimos a falta de sentido da vida, quando a inevitabilidade da morte pulula em tudo o que fazemos, quando descobrimos o tempo. Desejaríamos ser o ignorante, o cão ou a criança. Quero ser o ignorante ou o cão. Criança não. Fui criança um dia e já sabia. Nasci alma velha, enrugada, curvada, olhando as pedras do caminho. As que me têm apedrejado. Não quero ser criança.

Design sem nome.png

 

Eu e tu

Esta noite caí. Atravessando o vazio, braços e pernas descoordenados, embalados pelo vento que atravessa um corpo que cai, perdido na imensidão no nada. Caí na ausência. A queda na escuridão, que suga, morde, arranha e despedaça... essa foi a minha queda. Ao cair, a lama fria e paganhenta agarrada ao meu corpo semi-nu. Roupas rasgadas pelos braços castanhos, ossudos e esquálidos. Vermes rastejantes aproximam-se. Olham-me. Todos rastejamos. Do nascer ao morrer. Ou, pior, do nascer até ao adormecer e, noite após noite, mergulhar no imundo mundo que me acolhe, saudoso. Todas as noites.

A minha boca geme e grita. Mas eu aprendi a fugir dali. Fico a pairar e olho-me. Ridículo, o medo. Um dia tudo acaba e isto é apenas um episódio repetido que vives. Sabes o que é estar entre a vida e a morte. O palco onde se encenam os horrores que antecedem o fim. Foste escolhida para saber. Mas não sentes a lisonja da escolha. Ao invés, gritas, choras. Ridícula.

Aceita que existe um submundo onde só tu és bem-vinda. Só tu conheces o aperto da angústia de ver morrer, ver matar, sentir a dor de ter e perder. Noite após noite. Encenas para que um dia saibas como atuar. Porque, no fundo, sabes que vai acontecer. Vais voltar a perder. Vais voltar a saber o que é cair sem que haja uma mão para te segurar. Apenas para cravar as suas garras até que o sangue jorre, vermelho, castanho e depois negro... vermes que se alimentam de ti, escarniando porque és a escolhida. Porque suportas. Porque não desistes. Foste escolhida.

Quando pairo, por vezes fecho os olhos. Descanso os olhos do negrume de ver-te ali, rastejando em círculos. Sabes que não existe saída, mas continuas as rastejar. Nesses raros momentos, vejo os seus olhos risonhos que sobre mim entornam a ternura que achei que um dia sonhara. As mãos perfeitas que me acariciam o rosto. Oiço as palavras cálidas. Sinto o conforto de segurar uma chávena de chá morna numa noite gelada. De olhos fechados, transporto-me do pesadelo para o sonho.

Abro os olhos e vou buscar-te. Arrasto-te da lama. Vem comigo. Outras noites viveremos, em círculos rastejando. Por hoje, chega. Somos eu e tu. Não sonhemos porque um dia termina. Mas por hoje as garras não te terão mais. Somos eu e tu.

spooky-trees-1523992-640x480.jpg

 

Sai daí

Já passaram alguns meses desde que conversámos a última vez. Andar ocupada é a tua fuga. 'Sempre enérgica', como muitas pessoas te adjetivam. Mas tu e eu sabemos que tens tantos momentos livres que optas por ocupar com as mil coisas que te permitem continuares a fazer o que fazes há tantos anos: fugir. Uma nova série na netflix, um telefonema, ajudar os outros, redes sociais, sair com amigos... 'tudo justificável e necessário e prazeiroso', dirias tu. Verdade, desde que não fossem também fugas. Tal como a tua filha te escreveu hoje,  'és a pessoa mais forte que conheço'. Tens vencido obstáculos, és determinada, resistente ao sono e ao cansaço, tens um cérebro sempre ativo e, para ti, um obstáculo é um desafio. Mas também te posso dizer que, simultaneamente, és tão fraca. Não te ofendas. És fraca. És medrosa e incapaz de enfrentar o maior dos obstáculos; tens medo de entrar no bosque escuro e ali deixar-te estar, ouvir os sons que emanam da caverna e sentir a noite fria pousar sobre os teus ombros. Tens medo das noites sem lua e sem estrelas. Tens medo das vozes que te sussurram quando dormes finalmente. E tens pavor quando começam a gritar. Medrosa.

Quando vais parar e deixar as vozes conversarem contigo? Gritam porque te recusas a ouvi-las. Quando vais parar de procurar na vida que corre o que afinal está aí dentro? Quando vais sossegar e decidir que TU também és importante? Não TU, a profissional. Não TU, a mãe. Não TU, a filha. Não TU, a amiga. Não TU, a namorada. Mas TU quando não desempenhas nenhum papel. TU que choras baixinho porque tens momentos de verdadeira sensação de finitude. TU que consegues elevar-te e olhar o mundo lá de cima, como um jogo que se joga aqui. TU que tanto amas os animais que todos se aproximam e te procuram. TU que perdoas todos os que te magoam, sem excepção. TU que, apesar de dizeres que mereces, não te achas digna desse estado a que chamam felicidade. TU que trazes uma sombra ao teu lado. Acaricia-te os cabelos negros, cheira o teu odor, envolve-te nos seus braços escuros. Não deixes que te abrace e te leve. Fraca. Sai daí.

Tudo vai acabar tão depressa. Sai daí. Aquieta-te. Ouve-te. Decide o que sabes que tens que decidir. A hora chegou.

 

 

After all there's always me

Comprei um PC novo e, desde há alguns dias, ando a instalar programas, apps, acessos, antivírus e tudo o que um PC sempre exige. Estava há pouco a entrar num desses programas e, ao inserir a password, parei. Lembro-me bem dela, porque a criei há poucos dias e porque reflecte o pensamento mais consolador e, simultaneamente, mais solitário que eu poderia ter: Afterallthere'salwaysme

 

Fui educada por duas forças da natureza. Pai e mãe, terra e fogo, para quem os obstáculos apareciam com o intuito de serem ultrapassados, pessoas para quem não existiam depressões ou dias difíceis e para quem as palavras 'eu não consigo' não eram parte do léxico autorizado. Teimosia, perseverança, garra, alegria, empenho, determinação são substantivos que se impregnaram em mim desde muito menina. E nunca me disseram que era assim que eu deveria ser... mas aprendi pelo exemplo. Lembro-me de os observar, em silêncio. Cúmplices e apaixonados, quase envergonhando-me pelos beijos e abraços... afinal, eram mãe e pai aos olhos da filha 'caçula', mãe e pai nunca serão casal. Ponto final. Secretamente, porém, queria um dia descobrir esse tipo de paixão, essa união que permite que os obstáculos não ousem agigantar-se. Dizia até que só casaria com 'um José pequenino'; ou seja, alguém que possuísse todas as qualidades do José pai, mas que fosse do meu tamanho... Cumpri essa minha promessa. Como o José pequenino nunca apareceu, nunca me casei.

 

A menina cresceu e é hoje mulher. Porém todos sabemos que uma parte de nós permanece criança. E ainda bem, pois é essa criança que mantém viva a imaginação, a capacidade de brincar, de nos encantarmos com o mundo que nos rodeia e de sermos curiosos em relação ao desconhecido. Mantive tudo isso, mas mantive também o sonho. E nunca sonhei pequenino, apesar do meu tamanho quando me sentava numa cadeirinha alentejana, a olhar o enorme mundo à minha volta. Nesse meu sonho gigante de menina cabia o amor de um José e cabia o cultivo de um enorme campo de papoilas em frente à casa dos meus pais. O objectivo era ficar a observá-las oscilarem ao vento. Uma viagem até ao país do Mahatma Gandhi e outra ao Alasca. Cabia no meu sonho também resgatar das ruas todos os animais abandonados. Era um plano megalómano, quase tão grande como a certeza da sua concretização. Tudo estava delineado: teria muito dinheiro, compraria terrenos enormes no meu Alentejo, contrataria pedreiros e jardineiros para construírem casotas e jardins para todos os meus cães e gatos e iria recrutar muitos veterinários para tratarem deles. O amor e as festinhas ficavam por minha conta.

 

Quando escrevo 'afterallthere'salwaysme' não significa que não espere pelo meu José que irá comigo à Índia e ao Alasca. Não significa que as oscilantes papoilas não surjam frequentemente nos meus sonhos. Existir eu como último recurso não significa que este 'eu' não espere um dia rebolar-se com os seus animais num jardim verdinho no Alentejo. Mas eu terei que bastar até que o sonho se concretize, já que, para além do sonho, houve o exemplo da terra e do fogo. Esses elementos não se curvam perante a espera.

 

Creio que terei que alterar a password. Afterallthere'salwaysmeandmydreams

dreams.jpg

 

Viver com medo ou saltar do trapézio sem rede? Amar a partir dos 40... porque é tão complicado?

Fim de semana sem filhas. Duas amigas divorciadas, na casa dos 40. Uma sugere um filme mais dramático, daqueles que estreiam em 2 ou 3 salas de Lisboa, daqueles que pouca gente quer ver, na verdade. A outra diz que quer algo leve, que a faça rir. Rir é algo que ambas gostam. Convite aceite. O filme? 'Book Club' (em português, meio abrasileirado, 'Do jeito que elas querem'). O cartaz mostra 4 protagonistas ainda mais velhas que estas 2 amigas na casa dos 40 (e um sorrateiro pensamento atravessa-lhes o cérebro - 'estaremos a chegar já ali??!!' - algo realmente assustador nesta sociedade que venera a juventude e algo ainda mais aterrador quando estas duas amigas, embora deslumbrantes, inteligentes e interessantíssimas, estão, digamos, entre namoros...)

 

As protagonistas são 4 amigas na casa dos 60 ou mais anos, resolvidas, independentes, mas com problemas no amor. Têm desde há muito tempo um clube literário e eis que decidem ler 'As 50 sombras de Grey' (acabam por ler a trilogia!). Todo o filme se desenrola a partir destas suas leituras (descobrem novas tendências na sexualidade que até ali desconheciam!) e são estes livros que as fazem equacionar a importância do sexo e das relações. Vários aspectos são focados no filme que, de forma muito divertida, roubando muitas gargalhadas na sala, toca em pontos sensíveis e nos quais ou nos revemos ou nos lembram algumas pessoas com quem nos cruzámos.

 

Desde que os casamentos deixaram de ser para a vida e passaram a ter prazo de validade, é muito comum vermos homens e mulheres de 40, 50, 60 ou 70 anos a redescobrirem a arte da conquista, do namoro, da relação com o sexo oposto (ou sexo igual, who cares?) E, de facto, nestas idades todos trazemos uma bagagem, uma ou várias malas de viagem cheias de memórias, traumas, recordações, ilusões, certezas, pré-conceitos e... medos, muitos medos. E é por isso que algo que deveria ser tão simples e genuíno se transforma numa complexa equação de engenharia aeroespacial na qual todos os detalhes são avaliados, todos os obstáculos se agigantam e rapidamente o resultado da equação é a desistência... porque correr riscos é para os audazes e, convenhamos, audazes emocionais há mesmo muito poucos.

 

Elas: 'as mamas descaíram, a barriga tem estrias e a celulite vai notar-se!'

Eles: 'ela é mesmo especial... vai correr mal, vou sofrer. É melhor afastar-me já.'

Elas: 'ele está online à meia noite e não é comigo! Deve andar à caça. Esquece. Não vou ser mais uma da lista.'

Eles: 'ela tem filhos... é muita responsabilidade...'

Elas: 'as minhas filhas já são crescidas... o que diriam se soubessem que tenho andado a sair e a namorar?... Já não tenho idade para isto. Vou ganhar juízo.'

Eles: 'ultimamente perco a ereção... com ela não quero que aconteça. Que vergonha... estava tudo a correr tão bem... afasto-me.'

 

... e a lista seria quase infinita, porque há tantas, tantas razões para termos medos. Porque já não somos inocentes adolescentes de 17 anos que se apaixonam e acreditam que é para sempre e que vivem intensamente o presente sem se deixarem afectar pela ideia de um futuro negro e assustador. Porque tivemos relações anteriores que causaram desilusão, tristeza, dor. Porque a vida já desmoronou uma vez e nunca nos esquecemos do esforço para nos reerguermos. Porque somos humanos e o ser humano (sobretudo o ser humano não adolescente), é cauteloso. Afasta-se do fogo para não se queimar.

 

Porém, questiono-me: e o ser humano maduro não deveria ter crescido emocionalmente, tendo aprendido a avaliar as suas emoções e a não ter receio de falar delas? Não fazemos por ensinar às crianças a importância de exprimirem as emoções, gerindo-as? Será mais um caso de 'faz o que eu digo mas não faças o que eu faço'? E todos os milhões de medos que se sentam ao volante e conduzem as ações de homens e mulheres que deambulam nesta arte do enamoramento?! Medo do que o outro vai pensar, medo de fazer má figura, medo de parecer e não ser ou de ser e não parecer, medo de falhar, medo de dar demais e sofrer, medo de dar de menos e perder, medo de gostar demais e ficar numa posição de fragilidade, medo de não ser gostado, medo de não corresponder ao expectável, medo de... SER UMA PESSOA!! 

 

Seria tudo TÃO fácil se fizessemos nós, adultos, como faz a minha filha Matilde quando vai participar num dos seus campeonatos de patinagem: visualiza os medos (e tantos que ela tem nesses dias!), imagina-os como folhas de papel que ela amachuca, aperta, esmaga. E depois deita fora. Inspira, sorri e desliza nos seus patins esquecendo medos, avaliações, júris. Faz a sua coreografia, dança... porque ama o que faz e porque está ali por ela mesma e para se divertir.

 

Todos os medos que nos impedem de sermos nós mesmos quando nos relacionamos com alguém... esses medos não nos caracterizam. São camadas e camadas de dores, de mágoas, de desilusões, que nos cobrem e que impedem que possamos ser genuídos. Reconhecermos as ações que temos que nascem do medo e as que evitamos porque receamos algo é um enorme passo para fazermos diferente. E arriscarmos aproximarmo-nos do fogo, não para nos queimarmos, mas para nos aquecermos. De mão dada com alguém que também teve a audácia de se mostrar como é. Porque o amor pode ser maravilhoso se tivermos a coragem de saltar do trapézio sem rede. E assim voltar a sentir as borboletas na barriga.

trapezio.jpg

 

O que podem ter em comum o aborto, o machismo e a procura da perfeição?

Estava hoje a ler as notícias do Público Online e deparei-me com um artigo muito interessante que mostra como a publicidade pode ser interventiva socialmente. Começa por noticiar um video viral que aborda o tema da discriminalização do aborto na Argentina (proposta de lei infelizmente chumbada no senado). Laura Visco, publicitária argentina a viver em Amsterdão, mostra em 51 segundos que, enquanto os senadores votam tendo em conta sobretudo a (i)moralidade do aborto, milhões de mulheres procuram como o podem fazer clandestinamente, sujeitando-se a consequências físicas e emocionais muitas vezes irreversíveis. Brilhante. Porque quem quer ou tem que abortar não deixará nunca de o fazer porque não é legal. Trata-se de uma decisão complexa e pessoal, polémica e politizada. Todos nos recordamos do martírio que tivemos em Portugal até que as mulheres pudessem passar a abortar legalmente. O que não significa que o façam de ânimo leve e sem uma tremenda dor no peito. Também ela muitas vezes irreversível.

 

 

 

Laura Visco foi também responsável por mudar o caminho tradicional e machista que a marca Axe sempre usou para comunicar: o típico homem de barba rija tem que conquistar a mulher, ter pêlos no peito e adoptar os gostos e os comportamentos que se esperam do sexo masculino. 'Um homem não chora', tantas vezes ouvimos dizer durante a nossa infância, quando um amigo ou irmão resvalava para a sua humanidade e deixava escapar emoções que não eram típicas de macho, nomeadamente verter lágrimas, óbvio sinal de fraqueza (estou a ser irónica. Já me conhecem, certo?)

Tive a sorte de crescer numa família onde um irmão era um ser com emoções e cuja sensibilidade não foi amputada; mas todos sabemos que essa não era prática comum até há bem pouco tempo ou até mesmo nos dias que correm.

Abaixo podem ver o video publicitário, disruptivo para a marca Axe e para o posicionamento que desde sempre adoptou.

 

 

Ainda a propósito das marcas que conseguem ter uma posição interventiva na sociedade, levando o consumidor a questionar-se e, in extremis, a mudar o seu ponto de vista e até o seu comportamento, sinto-me excitada por partilhar convosco o video abaixo (é de 2015, mas o tema que aborda é muito actual). Trata-se de uma experiência social levada a efeito pela marca Dove. Essa marca comunica com a mulher real (e a mulher real somos todas nós e não as imagens trabalhadas em photoshop que aparecem nas revistas, na internet, ou no cinema), quebrando as barreiras dos estereótipos da mulher perfeita. A mulher real é bonita, porque a beleza é a soma das idiossincrasias que contam a nossa história pessoal. Fomos formatadas desde pequenas para odiarmos os sinais que mostram que já não temos 20 anos... as rugas, as estrias após as gravidezes, a celulite. De tal forma estamos imbuídas desta auto-condenação que evitamos muitas vezes ver a imagem que o espelho devolve.

Infelizmente, para esta cultura da eterna juventude também muito contribuiu a publicidade. A indústria da beleza factura biliões e precisa que os consumidores queiram continuar a adiar as rugas ou a cobrir os cabelos brancos. E não há nada de errado em querermos cobrir os cabelos brancos... Errado é sentirmo-nos medianas porque não correspondemos à imagem de perfeição com a qual fomos impactadas durante toda a vida. 

 

 

Esta excessiva preocupação com a imagem, com a aparência em detrimento da essência, com o artificial em contraposição ao natural, leva-me a questionar o que queremos ser enquanto sociedade. Que pessoas estamos a criar e que serão os adultos de amanhã... e quem são os adultos de hoje, contaminados por pré-conceitos por vezes assustadoramente irracionais e desprovidos de valores? Tema para um próximo post.

 

Aqui o link para o artigo do Público que me levou a estas reflexões.

 

O amor ainda se usa?

Morreremos realmente quando o sonho nos sobrevive?

 

Cai o corpo, cai a voz, fecham-se os olhos. Mas permanece a imagem da mão que tão bem conhece e que virá acariciar os cabelos brancos que restam. Ainda sonha com os olhos doces fixamente amando os seus. Ainda espera, acreditando que o amor sobrevive ao fim. Finda esta vida, permanece o amor.

 

E quando o fim do amor se antecipa aos olhos que partem? Partimos vazios, sem um sonho que nos transporte; sem a leveza de uma nuvem. Partimos com o coração negro, frio, há muito pedra. Mesmo em vida.

 

Questiono-me se o amor é sobrevalorizado. Se é afinal uma tola invenção romântica que de tal forma se agarrou à sociedade, à educação, à literatura, cinema e música, que se tornou nossa. Existem explicações científicas para o amor que o justificam como adjuvante na continuidade da nossa espécie. Mas, na verdade, a continuidade da espécie depende do desejo sexual e, depois, do amor de mãe e pai, cuidador das crias. O que nos leva realmente a amarmos outra pessoa, a querermos viver todas as emoções do amor romântico? Se por um lado são as respostas fisiológicas que se desencadeiam quando somos atingidos pela seta do cupido, por outro, será a partilha, a entrega, a possibilidade de vivermos diálogos enriquecedores ou silêncios confortáveis.

A paixão desencadeia a produção de dopamina, de tal forma viciante que, perante a ausência do ser amado, sentimos o síndroma de abstinência. Mas esse estado tem um prazo; o nosso cérebro não suporta viver muito tempo em estado de paixão. Evoluímos depois, ou não, para o estado de amor. Nesse estado, começamos a ver o outro como ele realmente é, e não através do filtro cor-de-rosa e cheio de purpurinas da paixão. Após a paixão, deverá vagarosamente chegar o amor. Imagino-o a caminhar junto a um riacho, homem sábio de barba branca, conhecedor dos segredos do mundo, voz grossa e amistosa. Imagino-o a segurar as mãos dos apaixonados e oferecer-lhes esse tesouro que é o amor, cada vez mais raro.

 

Estará o amor em crise? Estaremos perante uma sociedade que, cada vez mais viciada nas gratificações imediatas, na rapidez no acesso a informações, pessoas, encontros e sexo, se molda ao facilitismo e à superficialidade? Ou apenas temos mais meios de chegarmos a mais pessoas, mas afinal todos procuramos o tal e a tal que nos dará a mão no cinema, com quem poderemos partilhar quem realmente somos e com quem poderemos chorar em silêncio? 

 

Questões que terão respostas diferentes, de pessoa para pessoa. Eu quero viver todo o percurso: sentir o vício da paixão, as mãos trémulas, rir sem motivo e ficar com olhos cor-de-brilho-de-estrelas. Fazer do teu peito o meu abrigo e ali deixar-me ficar. Acordar-te com o meu abraço e vermos juntos, ao longe, vagarosamente a caminhar, o sábio homem de barba branca. Sorri-nos, transportando consigo o nosso tesouro. Porque o nosso amor sobreviverá ao nosso fim.

 

 

Sou

Sou a água que foge por entre as pedras no rio, pelo meio dos teus dedos, pela areia para se perder no imenso mar.

Sou o vulto que vês virar a esquina e que desaparece quando corres.

Sou a brisa invisível que te sopra o rosto.

Sou a memória das gargalhadas que te fizeram sorrir.

Sou o ontem que lá ficou, no tempo que não existe. Sou aquela que te acena do passado, imóvel, sem passos.

Sou o dia que morreu. A cinza onde apenas tu vês brilho e cor.

Sou a árvore que se apaga. Garras quentes que me abraçam. E me devolvem à terra.

Sou a música que definha, notas que se despedaçam, querendo cantar.

Sou a voz que emudece. Canção rouca que se desvanece.

Sou o pássaro na gaiola. Asas quebradas. Canção de lamentação.

Sou a esperança que um dia tive em mim. E que, caminhando e tropeçando, um dia morreu.

 

Dating aos 40 (ou mais, ou muito mais ou só um pouco menos) - dicas (parte 1)

Se se tornou moda, tendência ou apenas é o reflexo de uma sociedade cujas dinâmicas homem / mulher mudaram, o que é facto é que a taxa de divórcios em 2016 era de 69. Ou seja, dos 100 casais que gastavam fortunas na boda, que juravam amor até que a morte os separasse e que ainda acreditavam nos contos de fadas, 69 divorciaram-se. Claro que não temos dados acerca das uniões de facto que resultam em separações de facto, mas ou os dados são semelhantes aos divórcios, ou superiores, já que uma separação de facto é menos dispendiosa que um divórcio; logo, mais fácil e acessível.

 

As razões deste quebrar de laços e laçarotes cor-de-rosa bebé e azul céu são várias. Poderia divagar acerca da independência financeira das mulheres, das exigências profissionais, da genética poligâmica dos seres humanos, da falta de tempo para o casal, do enfoque das mulheres nas suas crias, esquecendo muitas vezes o seu papel de fêmea, entre muuuuuiiiiitttttaaaaas outras. Uns terão umas razões, outros terão todas e mais algumas. A verdade é que muitas de nós (e muitos de nós) deparamo-nos novamente com todo um leque de possibilidades de interação amorosa, de um dia para o outro. E há que encará-lo com um rasgado sorriso no rosto, pois é um brand new world, mates! (perdoem-me o inglês, mas há dias que escrevo e penso nessa língua, e vai acabar por contagiar este texto. Pois, assim seja.)

 

Seguem aqui as primeiras dicas para dar início a esta segunda adolescência, no que ao dating diz respeito:

1) Passado o período de nojo (que, aqui, podemos assumir com os 2 significados) - que rica é a língua portuguesa!  - há que começar a olhar em redor. Arrumar a roupa do luto e trocá-la por roupa da mesma cor, mas com elegantes rendas e que se usa em contacto directo com a pele, se é que me faço entender.

 

2) Esquecer o empenho em nos tornarmos cada vez mais semelhantes aos nossos parentes símios e fazer a depilação. 'Ah e tal, sou feminista, assumo-me como sou, não aceito a opressão dos homens...' Minhas queridas, ser feminista não implica termos o nosso corpo coberto por uma espessa pelagem de tonalidades entre o amarelo e o preto; não implica levantarmos os braços e termos dois animais mortos ali aninhados; não implica relembrar o Álvaro Cunhal através das nossas próprias sobrancelhas. Vamos ser feministas em assuntos que realmente façam a diferença, interessem e que não boicotem de imediato qualquer possibilidade de sucesso com o sexo oposto (ou com o mesmo sexo; não tenho esses preconceitos).

 

legging-com-pelos.jpeg

3) Ganhar coragem, abrir o roupeiro, experimentar os ítens que terão que ser datados com recurso ao carbono 14. 'Já não serve, mas vou fazer dieta e um dia vai servir!', pensas tu, convicta de que vale a pena continuar a arquivar determinadas roupas onde não cabes desde os primeiros encontros com o ex, aos 21 anos. Ou 'esta saia serve-me e é clássica; fica sempre bem!'. Ouve o meu grito: não queres ser clássica nos teus dates! Queres ser uma quarentona boa, gira, feliz e QUE NÃO LEMBRE A AVÓ NO TÚMULO!

Faz uma limpeza ao teu roupeiro, sê altamente crítica com essa mulher que vês no espelho, dá-lhe bofetadas e abanões até largar as roupas cheias de traças de há 20 anos. Em seguida, ajuda-a a fazer uma fogueira comemorativa de um armário vazio!!

 

4) Olha para os pés e para as mãos. Lembram-te as agricultoras dos anos 60? Assemelham-se às extremidades do trolha que anda a trabalhar aí na casa ao lado? (sua tarada, não estava a falar DESSA extremidade!) Fizeste um esgar envergonhado, eu sei. Entre peles, calos, verrugas, pêlos  e micoses, talvez, se procurares bem, encontres também 1 par de pés e 1 par de mãos. Liga à esteticista, tira 1 dia de férias, diz-lhe que terá que reservar 1 dia só para ti e que leve a rebarbadora. Terá o prazer de esculpir umas mãos e uns pés femininos, qual Michelangelo, mas em 2018.

 

5) Abre a tua bolsa de maquilhagem. Não a encontras porque tem sido a tua filha a usá-la nas suas brincadeiras nos últimos anos, e não tu, certo? Batons completamente rasos, sombras que se transformam em pó assim que lhes tocas com o pincel meio desfeito, base que cheira a mofo.

Deita tudo fora (já nem a tua filha, bem mais atenta à moda, vai querer isso!), dirige-te a uma loja da especialidade e compra novas maquilhagens, Mas, POR FAVOR, não queiras parecer um spooky clown, não aches que um laçarote na cabeça e uns lábios cor de rosa te irão rejuvenescer (apenas ficarás penosamente ridícula...) e jamais acredites que as purpurinas vão emitir vibrações de coolness. Maquilhagens arrojadas só ficam bem nas miúdas das revistas (e com recurso a photoshop que retira rugas, papos, olheiras e assimetrias no rosto).

 

Quando puseres em prática estas 5 dicas:

- terás um roupeiro vazio (mas não poluído com ítens arcaicos) que, em potência, tem roupas lindas e que te irão transformar numa diva!

 

- terás lingerie sexy e preta, estarás depilada, de mãos e pés arranjados; ou seja, poderás dedicar-te aos teus instintos sexuais a qualquer momento, sem teres os seguintes sussurros a atravessarem-te o cérebro: 'Ai, espero que ele não me passe a mão na perna! Vai achar que ainda estou de collants... só que não!...' ou 'Por favor, que não tenha o fetiche de pés que li na Maria há 15 anos... tenho 2 calos em cada dedo grande e 3 calos nos mindinhos!' Também não quero que te assemelhes à avó sepultada, com cueca-calção-fraldão.

 

- estarás maquilhada. Menos rugas (sim, já tens rugas; esquece essa auto-sabotagem de 'ah, e tal, são de expressão...'), menos manchas (ainda resquícios do pano da gravidez), menos olheiras (que se tornaram crónicas após as mil noites sem dormires por causa das pestinhas e que depois decidiram alojar-se de vez nessa confortável zona por cima das bochechas, quando achaste que valia a pena chorares meses seguidos por causa do falecido).

 

Ou seja, temos aqui um grande avanço neste projecto de te transformares numa femme fatale, diva, matadora, sexy bitch. Vou dar-te uns dias para que ponhas em prática estas 5 dicas e... VOLTAREI! Há ainda um longo caminho que terás que percorrer até te iniciares nesse hobby do dating at 40.

 

Vamos falando!?

Miragem

Naquela rua a preto e branco, as luzes inquietas iam apagando-se à medida que caminhava. A viúva noite cobria-se de véus escuros, uns sobre os outros. Bordados apagados. As sombras desvaneciam-se num abraço, amantes saudosas, gargalhando baixinho. Fios de água desciam a rua comigo; e o céu ainda chorava, cobrindo o rosto com as enrugadas mãos. Ora desdém ora vergonha. 

 

Olhava o fim da rua à medida que caminhava; sempre achara o destino mais belo que o percurso. Porém, todas as vezes que atingira um destino, outro se me afigurava mais apetecível. Oh imperfeição humana, insatisfação humana, ridículos humanos. A escassos metros, era uma rua feia, suja, nauseabunda; ao longe, ao fundo da rua, com as luzinhas como pirilampos, era atractiva, miragem que me convidava a entrar nela. Promessa de sonho. O canto das sereias, o feitiço que nos leva. Com o desencantamento, percebemos que o destino é igualmente feio, sujo, nauseabundo. 

 

Sigo caminhando nesta tremeluzente noite. E amanhã. E depois. Pernas que não se cansam, voz emudecida, lábios que já não sabem sorrir. Sigo a miragem, atravesso desertos e combato moinhos. Até eu também cobrir o rosto com as enrugadas mãos. Não por desdém ou por vergonha. Por exaustão dos olhos.

 

moinhos de vento.jpg

 

Mais sobre mim

imagem de perfil

Arquivo

  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2020
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2019
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2018
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2017
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2016
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2015
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub